A arte de criar cães: bem-estar, legalidade e
responsabilidade
Diversas espécies de animais se subdividem em
raças, ou subespécies. No caso do “canis lupus familiaris”, ao longo dos
séculos, através da domesticação, o ser humano realizou uma seleção artificial
pelas suas aptidões, características físicas ou tipos de comportamentos,
gerando assim as mais diversas raças caninas.
Para que seja considerado como raça, tais
divisões são regulamentadas por clubes de cinofilia e mantida através de
criadores de cães que se comprometem com a preservação e melhoramento dessas
raças.
Para que essa preservação seja possível, os
clubes estabelecem um padrão. Porém, é necessário que esse padrão seja avaliado
por conhecedores da raça, elegendo-se os melhores exemplares. É para isso que
existem as exposições caninas. Os criadores selecionam aquele que acreditam ser
o melhor exemplar e levam em exposições para que os cães sejam avaliados e
assim recebam certificados (títulos), atestando estarem dentro do padrão
exigido e, consequentemente, elegendo os melhores exemplares. Da mesma forma
ocorre com as provas de trabalho.
Como se trata de exemplares vivos e não
objetos que possam ser copiados, um acasalamento traz resultados diversos.
Criadores comprometidos procuram destinar apenas os melhores exemplares para
procriação, provas e exposição. Se não houver exemplar apto, um criador
comprometido com a raça que cria evitará encaminhar um cão a outra pessoa
destinado a essas finalidades. É impossível prever o futuro do cão quando ainda
é um pequeno filhote, porém, a experiência do criador o leva a identificar
determinados aspectos físicos e de temperamento, auxiliando nessa seleção.
O padrão da raça prevê características físicas
e de temperamento. Tais características devem ser preservadas para que a raça
seja mantida. Para tanto, é necessário efetuar acasalamentos. Quando um cão é
escolhido para ficar com o criador ou ser destinado para criação, esporte ou
exposição, os outros filhotes da ninhada consequentemente serão vendidos ou doados.
É nesse momento que os cães de raça vão para proprietários que querem
exemplares para guarda ou companhia. Em algumas ninhadas pode haver mais de um
exemplar apto mas com certeza uma boa parte deveria ser destinada apenas para
companhia ou guarda, dependendo da raça. Mesmo sendo bons exemplares, não serão
os melhores para procriação, exposições ou provas de trabalho.
Esses cães, sejam filhotes ou adultos, não
podem ser objeto de compra e venda sob a ótica consumerista por não se tratarem
de um simples objeto inanimado nem haver uniformidade no resultado final. O cão
está sujeito a mudanças no seu físico, caráter e até mesmo a doenças adquiridas
ou genéticas não previstas no momento da aquisição.
Por ser dotado de sentimentos, não deve ser
apenas vendido ou doado sem um critério de seleção. Por exemplo: um criador
coloca à disposição um filhote de excelente linhagem mas sem as melhores
aptidões para exposições, reprodução ou esporte. Esse cão acaba sendo destinado
para um desses fins pelo novo dono, e pode não obter êxito ou o resultado não
ser o esperado e talvez seja substituído pelo dono descontente. E para onde vai
esse cão? Muitas vezes passa de mão em mão por não se adequar ao local onde foi
viver. Com certeza esse destino não é o mais adequado para um animal. Por isso
é adequado que o criador ou profissional contratado para essa finalidade seja a
pessoa apta para decidir a destinação desse cão. Que possa indicar qual o
filhote mais adequado para cada finalidade e, se preciso, desfazer vendas ou doações
e até retomar o exemplar.
Porém, sob a ótica consumerista, o
desfazimento do negócio por essas razões pode gerar responsabilidade material e
moral para o criador. Da mesma forma, um objeto vendido e pago não poderia ser
retomado. Mas o que é mais importante? O bem-estar do cão e a preservação da
raça ou o abalo moral de quem esperava um cão e não obteve? Se o cão inadequado
for destinado a essa pessoa que o aguardava, muito provavelmente o abalo ao cão
e a essa pessoa, a longo prazo, serão maiores e decorrentes dessa destinação
inadequada.
A cinofilia só pode ser exercida se houverem
criadores comprometidos com a raça que criam e assim trabalhem para manter as
características que determinam aquela raça.
Por essa razão, a comercialização formal de
cães e os direitos que norteiam essa prática batem de frente com a preservação
das raças caninas e o bem-estar animal.
Para preservar as raças caninas e zelar pelo
bem-estar dos cães, adequado seria que sua propriedade e destinação tivessem
legislação própria. O que inclui proibição de venda de cães em lojas e feiras.
Porém, enquanto isso não ocorre, ideal é
efetivar a doação ou venda desses cães seja a título gratuito ou oneroso.
Também estabelecer contratos específicos para cada finalidade. E no momento de
gerir conflitos, priorizar o bem-estar do cão e avaliar, se houver, a real
responsabilidade do criador.
Preservar raças caninas é um trabalho difícil
e deve ser remunerado por quem se beneficia dessa prática. O cão em si não pode
ser visto como um objeto de valor monetário. Porém o trabalho agregado à sua
criação e educação bem como as despesas havidas merecem a devida recompensa.
Tratando-se de ser vivo e com sentimentos, não
pode ser visto como mero objeto e nem como ser humano. O “canis lupus
familiaris” é uma espécie com suas peculiaridades. A espécie merece respeito e
seus conservadores também. Aplicar regras do direito consumerista puramente a
relações de criação e adoção de cães é um retrocesso. Da mesma forma, a
responsabilidade civil deve ser ponderada levando-se em consideração o
bem-estar dos animais, a previsibilidade de danos e a real possibilidade de
prevenção. A legislação deve se adequar a essa realidade.
Criar cães é uma arte e necessita de
conhecimento e dedicação. Dedicação essa que pode ser recompensada
financeiramente, porém não deve fazer parte do comércio formal. A espécie
canina está introduzida na sociedade e muitos seres humanos se tornam
dependentes da companhia e da funcionalidade dos cães. A melhor forma de
preservar essa relação é adequar a legislação e sua aplicabilidade, mesmo que
de forma jurisprudencial.
Texto adaptado do original – autora: Ana Paula
Ruzinski - Advogada e preservadora de raças caninas
Nenhum comentário:
Postar um comentário